A compulsão pelo jogo é doença incurável, mas tem tratamento, diz a Organização Mundial da Saúde
Luiz de Carvalho
Depois de perder mais de R$ 160 mil apostando no chamado Jogo do Tigrinho, a pequena comerciante Vitória Damaceno Bittencourt, 23, moradora em Maringá, está usando suas redes sociais para alertar pessoas que, como ela, são vítimas de uma compulsão incontrolável diante da possibilidade de ganhar algum dinheiro apostando.
Já faz alguns meses que Vitória não aposta e admite que só está conseguindo ficar sem jogar depois que admitiu para si mesma que é impotente perante o jogo e que sua vida havia se tornado ingovernável. Ela pediu ajuda e está sendo apoiada pela família, principalmente de seu companheiro, que agora controla o acesso da mulher a dinheiro e a canais de apostas.
Mais cuidado com influenciadores
Vitória Damaceno ainda acumula uma dívida de R$ 110 mil em decorrência de empréstimos feitos no banco para jogar o Fortune Tiger, conhecido popularmente como Jogo do Tigrinho. Ela também perdeu R$ 50 mil das suas economias pessoais.
Em depoimento gravado no Instagram, ela diz que começou a fazer apostas em maio de 2023, com a intenção de melhorar seus ganhos. Na época, Vitória trabalhava como motorista de aplicativo e, mesmo após exercer a função de 10 horas a 12 horas por dia, ganhava apenas R$ 150 diários. Um aplicativo que prometia ganho rápido e fácil parecia uma boa opção. A divulgação feita por influenciadores digitais também parecia convincente sobre os possíveis ganhos.
‘Foi desesperador’
Nas duas primeiras semanas, os valores que Vitória apostava aumentaram. Começou com R$ 30 e R$ 50, algo que, na visão dela, parecia um valor pequeno, e logo cresceu para R$ 100, R$ 150 e R$ 200. “Ao aumentar o valor para R$ 100, ganhei R$ 800 em um dia. Pensei que conseguiria ganhar ainda mais.”
A compulsão para jogar se tornou incontrolável, como deve acontecer com um alcoólatra ou um viciado em drogas pesadas. Em três meses, Vitória estava fazendo apostas de R$ 500, R$ 800, R$ 1.000 e R$ 2.000. Com isso, também fez empréstimos no banco na tentativa de recuperar o dinheiro que eventualmente perdia.
“Os empréstimos foram feitos nesses quatro meses em que joguei. Eu perdia R$ 4 mil e fazia um empréstimo no mesmo valor. Era assim que eu fazia. Consegui ganhar R$ 20 mil ao todo, mas perdi tudo nos jogos. O jogo permite saques de no máximo R$ 3 mil por dia, e o restante do valor que você ganha fica travado, para uso dentro do aplicativo. O jogo faz com que você perca esse valor travado e use o que ganhou e sacou para continuar jogando”, conta ela.
Só para no fundo do poço
Depois de quatro meses jogando e sem saldo para continuar as apostas, Vitória retirou R$ 11 mil de uma conta conjunta com o marido, com quem mantém um relacionamento estável há dez anos. O valor seria destinado à entrada de uma casa. “O meu marido sabia que eu jogava, mas ele também achava que eu sabia o que estava fazendo. Ele não sabia que eu tinha pegado dinheiro na nossa poupança para jogar”.
Para evitar que ele percebesse a movimentação na conta, a jovem fez um empréstimo de R$ 20 mil. Com o saldo disponível, ela usou o dinheiro para apostar e, entre 17 horas e meia-noite de um único dia, se deu conta de que havia perdido tudo.
Foi somente quando não conseguia mais crédito para fazer novos empréstimos que ela decidiu contar a verdade ao marido. Juntos, os dois passaram a reconstruir a vida financeira do casal. No entanto, Vitória, inicialmente, não aceitou que estava viciada em jogar.
“Eu perdi todas as nossas economias. Foi desesperador ver que eu tinha feito isso com as nossas vidas. Faz meses que isso aconteceu, mas só agora eu me sinto confortável para admitir o erro e falar mais a respeito do assunto e buscar ajuda”. Veja mais
A doença é incurável, mas tem tratamento
Não conseguir se controlar diante da compulsão para jogar é um problema bem mais sério do que parece: é doença, é incurável e pode levar pessoas à ruína nas mesas de jogo, nos aplicativos de apostas e até em jogos de aparência inofensiva, como o jogo do bicho e as loterias da Caixa.
O Jogo Compulsivo (Jogo Patológico) é considerado uma doença pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que, segundo pesquisas realizadas pelo Ambulatório do Jogo Patológico do Hospital da Clínicas de São Paulo (ANJO), afeta de 1,5 a 3,5% da população.
Muitas pessoas buscam ajuda nos grupos de Jogadores Anônimos (JA; em inglês: Gamblers Anonymous, GA), um programa de 12 passos para ludopatas que segue a mesma metodologia dos Alcoólicos Anônimos (AA).
O JA é uma irmandade de homens e mulheres que se reconhecem jogadores compulsivos e que se reúnem em grupos, em uma base diária, com o objetivo de manterem-se abstinentes do jogo e restituírem uma maneira normal de pensar e viver.
Por enquanto há poucos grupos de JA no Brasil, mas diante do crescimento dos meios para apostar e o impulso que isto vem ganhando pela internet, com milhares de influenciadores divulgando apostas, a tendência é aumentar a quantidade de grupos. No Paraná, o único grupo de JA fica em Curitiba, na Avenida Theodoro Makiolka. nº 64. Há atendimento pelo telefone 41 99684-8004.
Vitória Damaceno Bittencourt ainda não conseguiu abater a dívida. Ela deixa um alerta: “Procure ajuda, apoio de um familiar, isso é fundamental. As pessoas estão precisando de ajuda, não de julgamentos. O jogo não muda a vida de ninguém, somente a dos influenciadores, que estão ficando cada vez mais ricos”.
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