Sisbiota Nupélia

Projeto Sisbiota Nupélia, da UEM, descreve 20 novas espécies, que ganharam nomes curiosos

“Grandes rios, como o Rio Paraná, serpenteiam por diversas paisagens, tanto montanhosas quanto de várzea. Nas áreas de várzea, podem se formar as chamadas planícies aluviais. São locais mágicos, onde águas correntes como rios e canais de ligação se encontram com grandes e pequenas lagoas, abertas e ligadas aos rios ou totalmente fechadas e isoladas, além de remansos e até poças temporárias em ilhas. Estas planícies aluviais possuem uma biodiversidade muito grande e, muitas vezes, endêmica1. Enormes canteiros floridos de ervas daninhas, de plantas enraizadas e flutuantes abrigam inúmeras populações de libélulas coloridas e aves aquáticas em nidificação2. Mas, também, sob a superfície da água, abundam centenas de espécies de peixes, insetos, crustáceos, moluscos e microrganismos que formam ricos ecossistemas. O Brasil possui muitos desses rios e planícies aluviais e é preciso conhecer sua diversidade”.

O trecho acima foi escrito por um pesquisador belga, que mantém parceria, desde 2004, com cientistas brasileiros que atuam no rio Paraná. Koen Martens é pesquisador do Royal Belgian Institute of Natural Sciences e professor da Universidade de Ghent, ambos na Bélgica. Seu trabalho é na área de Ecologia de água doce. Acessamos o texto reproduzido acima, depois que a equipe do C² assistiu uma palestra dele, na Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná.

Ever since Darwin” (Desde Darwin) foi o nome da apresentação realizada pelo professor. Na ocasião, ele traçou uma trajetória da evolução das espécies desde as teorias de Charles Darwin até as descobertas atuais em genética.

Porém, descobrimos que Martens é focado em pesquisas sobre ostrácodes. Estes são pequenos crustáceos, em sua maioria com menos de 1 milímetro de comprimento, que abundam nas várzeas do Brasil. Segundo o pesquisador, esses crustáceos “possuem duas valvas3, o que os faz parecer pequenos mexilhões, daí o seu nome popular ‘camarões mexilhão’. Muitas espécies são conhecidas, ou seja, já foram descritas e nomeadas pela ciência, algumas até há muito tempo, desde finais do século XIX e início do século XX. Várias espécies, no entanto, permanecem desconhecidas até agora, sem nome e sem descrição”.

O professor belga Koen Martens, durante a palestra sobre Darwin (Foto/Celso Ikedo)

Koen lembra, porém, que, recentemente, diversas equipes de taxonomistas, que são aqueles cientistas que descrevem, classificam espécies e seus gêneros, publicaram artigos nos quais algumas delas, antes desconhecidas para a ciência, foram descritas e pertencem às planícies de inundação brasileiras.

Um desses artigos foi publicado este ano. Estudantes e pesquisadores da UEM descreveram e nomearam sete novas espécies em dois novos gêneros de ostrácodes. Em um segundo artigo, publicado agorinha, em novembro de 2023, foi apresentado outro ‘novo’ gênero com quatro espécies novas para a ciência. E mais importante: algumas destas espécies ocorrem apenas em uma planície de inundação, outras podem ser encontradas em várias delas.

Quando falamos em descrição de espécie estamos nos referindo ao processo que detalha todas as características de um ser vivo. “É uma descrição formal de uma espécie recém-descoberta, geralmente feita na forma de um artigo científico”, como esclarece a pesquisadora Janet Higuti, do Núcleo de Pesquisa em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura (Nupélia/UEM). “A finalidade é fazer uma caracterização clara de uma nova espécie de organismo. Explicar como difere de espécies que foram descritas anteriormente ou estão relacionadas. A descrição da espécie, muitas vezes, contém fotografias ou outras ilustrações. A publicação em que é descrita propõe, inclusive, à nova espécie, um nome científico formal”.

Um ostrácode Leberis mariae encontrado na região do Reino Unido (Foto/David Fenwick)

SISBIOTA

Segundo Koen, estes trabalhos taxonômicos (de classificação, identificação e descrição de espécies), publicados pela equipe da UEM, só foram possíveis porque, há cerca de dez anos, a agência brasileira de financiamento científico, chamada de Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), financiou um projeto de pesquisa enorme. Coordenado pelos professores Fábio Amodêo Lansac Tôha e Luiz Felipe Machado Velho, do Nupélia/UEM, o estudo foi denominado “Biodiversidade e ecologia de diferentes comunidades aquáticas em quatro importantes planícies de inundação brasileiras (Paraná, Pantanal, Araguaia e Amazonas)”.

Este projeto está inserido em uma grande iniciativa: o Programa “Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade” – Sisbiota BRASIL (veja detalhes do projeto na outra reportagem da semana). A parte que coube à Universidade de Maringá foi a de fazer um inventário da biodiversidade aquática das quatro maiores planícies aluviais do Brasil: as do Alto Rio Paraná, do Rio Amazonas, do Pantanal e do Rio Araguaia.

A proposta foi elaborada pelos pesquisadores do Nupélia e contemplada ao concorrer ao Edital do Sisbiota, que contava com recursos federais e da agência de fomento científico  do Paraná, a Fundação Araucária, em 2010.

Quinze pesquisadores do Nupélia, além de alunos de graduação, pós-graduação e pós-doutorando, participaram do Sisbiota-UEM, sob a coordenação dos professores Fábio e Luiz Felipe. Um dos principais focos do projeto foi avaliar se os resultados obtidos para os padrões de biodiversidade aquática do rio Paraná se repetiam em outras planícies de inundação brasileiras. Para isso, foram realizadas coletas padronizadas no rio Paraná, ecossistema predominante de pesquisas do Nupélia, além das planícies de inundação da Amazônia, Araguaia e Pantanal.

Durante os cinco anos de projeto, cada planície de inundação foi amostrada duas vezes: uma na estação seca e outra na estação chuvosa. Essas expedições renderam grandes séries de amostras de organismos aquáticos, desde bactérias, algas e protozoários até peixes e plantas aquáticas.

Como esclarece o pesquisador Luiz Felipe, o estudo mostrou que “mesmo que os padrões de biodiversidade desses ecossistemas sejam primordialmente guiados pela flutuação dos níveis da água, as amplitudes de variação desses níveis e o grau de ação humana são bem distintos entre as planícies. Como consequência, são distintos os padrões de biodiversidade para os diferentes grupos taxonômicos e entre as planícies. Além disso, considerando os diferentes biomas e as distintas regiões geográficas, existem diferenças consideráveis na composição de espécies dos distintos grupos biológicos entre essas planícies”.

Além de responder a esta questão principal, o trabalho feito pelo Nupélia e pesquisadores de outras instituições (veja detalhes dos parceiros na outra reportagem da semana) proporcionou a descrição de 20 novas espécies para a ciência. E outras estão em fase de serem descritas. Algumas, inclusive, ganharam nomes relacionados aos pesquisadores e às instituições às quais eles estão ligados. Exemplos são diferentes espécies de ostrácodes: Brasilocypria pea, nome inspirado no programa de pós-graduação em Ecologia, da UEM; Strandesia nupelia, nome do Núcleo de pesquisa; além de Strandesia lansactohai e Strandesia velhoi, que trazem os sobrenomes do coordenadores do Sisbiota/UEM. Confira as imagens de algumas espécies de ostrácodes descritos, abaixo:

Microscopia eletrônica de varredura das espécies de ostrácodes das planícies de inundação da Amazônia, Araguaia, Pantanal e Paraná, descritos pelo Sisbiota/UEM

E não é só isso: “desde que foi implementado, em 2010, até seu término oficial, em 2015, quando entregamos o relatório final, o projeto contribuiu com a formação de dois pós-doutores, três doutores, 13 mestres e 21 alunos de graduação, que utilizaram os dados do Sisbiota em estágios de iniciação científica e na elaboração de trabalhos de conclusão de curso”, destaca o professor Fábio.

Novos cientistas

A formação de recursos humanos a partir desse projeto continua até os dias atuais, com novas capacitações de graduação e pós-graduação que vêm sendo realizadas. Segundo Lansac-Tôha, “o programa facilitou a aproximação e integração de pesquisadores de distintas regiões do Brasil [Sul, Centro-Oeste e Norte], na troca de experiências e elaboração de metas e estratégias para que os objetivos pudessem ser atingidos”, comentou um dos coordenadores do Sisbiota na UEM.

Esses novos cientistas ainda têm a missão de concluir a difusão do conhecimento, enfim, dos dados e informações gerados pelo Sisbiota. Afinal, é preciso que seja difundida toda a contribuição sobre a diversidade brasileira proporcionada pelas pesquisas. Os coordenadores ressaltam que, apesar de o projeto ter sido financiado e concluído formalmente em 2015, o potencial do banco de dados obtidos é tão grande que tem propiciado pesquisas de grande relevância para a sociedade e para a comunidade científica, até agora.

Os coordenadores do Sisbiota/UEM, Fábio Lansac Toha e Luiz Felipe Machado Velho (Foto/Celso Ikedo e Arquivo pessoal)

Segundo o professor Fábio, o conhecimento adquirido vem sendo publicado em periódicos especializados de elevado impacto. Aproximadamente 50 artigos científicos foram submetidos e aceitos. Sem contar que, atualmente, dissertações e teses ainda estão sendo concluídas com os dados gerados pelo projeto Sisbiota.

“Além disso, mesmo após o encerramento oficial, parcerias foram e continuam sendo feitas com instituições nacionais e internacionais, visando à otimização da análise dos dados obtidos, intercâmbios e redação de artigos científicos”, destaca a bióloga Janet Higuti. Ela faz parte, também, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos (PEA/UEM), onde atuam alguns pós-graduandos autores dos trabalhos de descrição de novas espécies.

Uma destas cientistas que se capacitaram durante as pesquisas realizadas no Siabiota é Nadiny Martins de Almeida. Ela conversou com o C² e contou como foi participar do Projeto e qual é a satisfação de ser responsável pela descrição de inúmeras espécies. Confira no áudio abaixo.

A pós-graduanda Nadiny de Almeida ajudou a descrever várias espécies de ostrácodes durante a participação no Sisbiota (Foto/Arquivo Pessoal)

A ideia, agora, é começar um movimento para a continuidade destas pesquisas. Segundo Janet Higuti, após dez anos, seria essencial uma nova etapa do Sisbiota para ampliar o conhecimento sobre a biodiversidade a partir de novas técnicas e abordagens ecológicas. Além disso, como destaca o pesquisador Luiz Felipe, “uma nova etapa possibilitaria avaliação dos efeitos das mudanças climáticas, que vêm se agravando nas últimas décadas sobre ecossistemas aquáticos, sua biodiversidade e serviços ecossistêmicos4 fornecidos por esses grandes rios e ambientes a eles associados.”

A professora Janet Higuti, do Nupélia/PEA (Foto/Celso Ikedo)

A bióloga Janet chama a atenção, para a extrema  importância das pesquisas sobre os  ostrácodes, por exemplo, já que eles podem contribuir para a avaliação da qualidade da água dos rios e bacias.

Uma tese de doutorado orientada por Higuti mostra que esses organismos são um importante aliado no ambiente aquático, porque indicam impactos ambientais por contaminação, reagindo facilmente ao estresse orgânico ou químico de um curso d’água. Em outras palavras, são bioindicadores, fornecem informações e sinais rápidos sobre as alterações no meio ambiente, mesmo antes do homem perceber, garantindo, inclusive, maior confiabilidade na elaboração de laudos técnicos.

“Durante o Sisbiota, ao mesmo tempo que as amostras de organismos foram coletadas, também foram medidos muitos aspectos da química e física da água nas diferentes regiões. Agora, dez anos após o término do projeto, essas enormes coleções de amostras e grandes bancos de dados de medições ainda são usados como base para pesquisas analíticas. Muitas, como vimos anteriormente, se tornam parte de teses de pós-graduação em universidades brasileiras. Isso mostra que precisamos investir em iniciativas como o Sisbiota, especialmente, neste momento, em que estamos presenciando sérias mudanças causadas pela emergência climática que vivemos”, explica a bióloga.

Ficamos aguardando para conhecer novos organismos, mergulhar mais fundo na nossa biodiversidade e contar tudo aqui no C².  

Conheça os detalhes do Programa “Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade” – Sisbiota BRASIL, nesta matéria do C².

 

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