Laércio Nickel, o dentista que fotografou a história de Maringá enquanto ela acontecia

O dentista apaixonado por tecnologia, que montava rádios com a mesma destreza que fazia uma obturação, se preocupou em fotografar Maringá enquanto o desenvolvimento da cidade acontecia e assim registrou a Avenida Brasil cheia de tocos de peroba, as ruas poeirentas, automóveis e caminhões atolados na lama em pleno centro da cidade e todo o processo de construção da Catedral

 

Luiz de Carvalho

Doutor Laércio Nickel apresenta parte de sua coleção de máquinas fotográficas, todas funcionando        Foto: João Cláudio Fragoso

Da janela do 16º andar do Condomínio Maison Royale, no coração da cidade, tem-se a visão dos sonhos do qualquer fotógrafo: logo à frente, a menos de 200 metros, está a Catedral, olhando para baixo vê-se o Paço Municipal e o histórico Grande Hotel, para todos os lados vê-se a florada das árvores das ruas, bosques e quintais de quase toda Maringá. E o fotógrafo com este ângulo privilegiado tem à sua disposição mais de 200 câmeras fotográficas, está acostumado a fotografar Maringá muito antes de existir a Catedral e a prefeitura. E as árvores que hoje dão flores de todas as cores a cada estação ainda não tinham sido plantadas.

A coleção está também em outros pontos do apartamento, junto com outros objetos antigos

O fotógrafo na realidade é um dentista. Ou melhor, um radiotécnico, que por pouco não foi um engenheiro elétrico, mas acima de tudo um pioneiro maringaense. O Dr. Laércio Nickel Ferreira Lopes, que por mais de 50 anos manteve uma concorrida clínica na Rua Basílio Sautchuk, quase esquina com Avenida XV de Novembro, e foi fundador e presidente da Associação Maringaense de Odontologia (AMO) ainda sai pelas ruas clicando ipês floridos, cerejeiras, primaveras, a Catedral, mas gosta mesmo é das fotos que fez “enquanto as coisas estavam acontecendo”, como a retirada de tocos de gigantescas perobas das avenidas e praças do Centro, o desembarque dos pioneiros na estação do trem ou na pequena rodoviária na “Praça da Pernambucanas”, a natureza exuberante que estava por todos os lados e, é claro, a Catedral, que na época era uma igrejinha de madeira.

Um dos orgulhos de Nickel é a foto em que a construção da Catedral aparece junto com a Catedral antiga e ilustrou a capa de um livro sobre a história da igreja em Maringá

No foco das muitas máquinas fotográficas de Laércio Nickel a cidade foi se transformando, assim como a própria técnica de fotografar. Antes, Maringá se resumia ao Maringá Velho e o Maringá Novo estava em formação, com construções e mais construções ao longo da Avenida Brasil e suas paralelas, era muito barro, muita poeira, gente chegando, carroças, caminhões, cavalos, bicicletas; as câmeras precisavam de filmes largos, os flashes eram lâmpadas imensas, que precisavam ser trocadas a cada chapa, e a revelação era feita em São Paulo. As fotos eram preto e branco. Com o tempo, chegaram o asfalto, as calçadas, os prédios modernos, as ruas vivem entupetadas de carros. A catedral de madeira foi demolida e nasceu o mais alto templo religioso da América do Sul. Esse passar do tempo também foi documentado nas fotografias do doutor Laércio, que fotografou do início ao fim a construção da Catedral. Uma das fotos mais significativas ilustra a capa do livro “A história da igreja católica em Maringá”, do padre Orivaldo Robles.

E as câmeras evoluíram, as fotos ganharam cores e hoje qualquer um pode fotografar se tiver um telefone celular.

 

Da Rolleiflex ao celular

E o dentista, com 93 anos, também evoluiu, assim como o fotógrafo, que aposentou a sua Rolleiflex 6X6cm, eternizada no standard “Desafinado” de Tom Jobim e Newton Mendonça, e clica com o celular, como todo mundo. A catedral, vizinha do edifício Maison Royale, onde mora, ainda é o principal alvo de suas fotos, assim como foi desde o início de sua construção. Agora, como mora no 16º andar, pode dar-se ao luxo de olhar a basílica de cima.

Uma raridade do acervo, Leica IIIf, fabricada na Alemanha em 1950

No apartamento que ocupa um andar inteiro, Laércio Nickel e a mulher, Lucia Moreira* (filha do comerciante e político pioneiro Napoleão Moreira da Silva), guardam as lembranças dos cinco filhos e muitos objetos históricos, como uma fusa de fiar linha, uma máquina de escrever Smith Premier, uma calculadora Facit, rádios antiguíssimos, um projetor de filme Super 8 e mais de 200 máquinas fotográficas, entre elas a Rolleiflex. E o dentista fotógrafo diz com orgulho que “todas estas funcionam plenamente”.

 

Luminária de sol

Nickel, mineiro de Poços de Caldas, chegou a Maringá em 1951, assim que se formou em Odontologia pela Universidade de Alfenas. Tinha 23 anos e sustentou seu tempo na universidade consertando rádios e outros aparelhos. Ao chegar, alugou um prédio recém-construído na Avenida Brasil, montou a clínica de dentista em uma sala no andar de cima e uma oficina de venda e conserto de rádios embaixo.

Em 2014, Laércio Nickel recebeu o título de Cidadão Honorário de Maringá. Na foto, ladeado pela mulher, Lúcia, e pela vereadora Marcia Socrepa

“Algumas coisas me encantaram, primeiro a pujança do local, que me entusiasmou quando eu ainda estava no ônibus, segundo foi a cordialidade das pessoas”, lembra, citando como exemplo o pioneiro Américo Cariani, que lhe alugou o prédio sem pedir fiador e para pagar o aluguel só depois que começasse a ganhar dinheiro.

Em 1951 Maringá ainda não tinha energia elétrica, o que é um problema para a instalação de uma clínica odontológica que não tinha gerador próprio. “O equipamento era muito simples, basicamente uma cadeira regulada a pedal, um motorzinho tocado com o pé e um fogareiro para a esterilização dos equipamentos. A luz do sol que entrava pela janela era a luminária”.

Nickel foi um dos primeiros ‘dentistas formados’ de Maringá e encontrou aqui muitos ‘dentistas práticos’, os famosos tira-dentes, que faziam basicamente o mesmo trabalho, porém sem uma formação universitária. “Os práticos não eram concorrentes, nem adversários. Eram profissionais necessários para uma população que crescia por hora. Quando cheguei, ao invés de criar caso com eles, fiz foi manter amizade, parcerias, nos ajudamos muito”.

 

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*Lúcia Moreira Ferreira Lopes, esposa de Laércio Nickel e mãe do empresário Ênio Ferreira Lopes, morreu em 5 de abril de 2019. Uma das mais antigas moradoras de Maringá, ela era filha do pioneiro Napoleão Moreira da Silva e de dona Armelinda Fernandes Moreira. Ela morava em Maringá desde 1945.

 

 

 

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