Luiz de Carvalho
Por muitos anos, sempre que eu pensava em Vinicius de Moraes, me vinha à mente uma camisa amarrotada, mas amarrotada mesmo, amassada, parecia que tinha sido tirada de dentro de uma garrafa. Além de amarrotada, parecia velha e levemente desbotada, como aquelas que tomam sol demais.
Mas, antes de falar da camisa, quero falar da foto, esta aí. Esse moreno alto, bonito e sensual da esquerda sou eu, o jovem da direita, que ficou fora do foco, é o jornalista Pedro Chagas Neto. O do meio você já sabe e a foto foi feita por Moracy Jacques em uma noite no Hotel Vila Rica, em Maringá.
Esse objeto que aparece no meio da mesa não é uma bolsa, como parece. É um gravador, dos menores que existiam na época.
Na época, Vinicius já tinha publicado a maioria de seus sonetos e peças de teatro, a bossa nova já corria o mundo fazia uns vinte anos e os discos da dupla Toquinho e Vinicius tocavam o dia inteiro nas rádios. No entanto, somente eu, Pedrinho, que éramos estudantes do Gastão Vidigal, a Marli, da sucursal de Folha de Londrina, e o Moracy fomos ao hotel conversar com o Poetinha. Não apareceram por lá as rádios, nem TV e muito menos os professores e estudantes da área de Letras.
Vinicius e Toquinho vieram a Maringá fazer um show no antigo Cine Paraná, que a essa altura se chamava Ouro Preto e quando se acabou chamava Peduti. Quando chegamos, Vinicius tinha ido para o apartamento tirar uma soneca, como sempre fazia antes dos shows, mas o Toquinho, na época quase um menino, nos atendeu, foi muito solícito e nos deixou bem à vontade. Pouco tempo depois o Poetinha desceu as escadas, com uma moça segurando cada braço e outra logo atrás, todas bonitas, é claro. Em uma das mãos, um copo pelo meio e na outra uma garrafa de whisky, como eu já esperava.
Vinicius se aproximou de nós como se fôssemos velhos conhecidos, abraçou cada um e puxou o quarteto para uma área cheia de sofás, como se o hotel fosse a sala da cada dele.
A essa altura, eu já tinha encafifado que ele era mais moço do que parecia nas capas de disco e bem mais baixo do que eu imaginava. Um baixinho barrigudo. Mas, o que chamou mesmo a atenção, além dos cabelos grisalhos despenteados, foi a camisa amassada.
Tudo indica que ele subiu para tirar uma soneca e dormiu com roupa e tudo. Ou então fez festinha com as moças, mas não tirou a camisa. Dizer que ela estava amassada é pouco.
Mas, o que marcou foi a solicitude do poeta. Apesar de já na época ser uma das maiores lendas da história das artes no Brasil, ele foi mais atencioso do que poderíamos esperar de um grande amigo. Primeiro mandou trazer bebida para nós, depois chamou os músicos da banda e apresentou um por um, contando detalhes da vida de cada um. Ali estavam o contrabaixista Azeitona, uma lenda, um pioneiro da bossa nova, o homem que tocou o contrabaixo na primeira gravação da bossa nova, acompanhando João Gilberto em “Chega de Saudade”, dos primórdios da parceria de Vinicius com Tom Jobim; Roberto Sion, o flautista e saxofonista escolado no jazz; o baterista Mutinho, compositor, inclusive parceiro de Toquinho e Vinicius.
O Poeta tinha muito orgulho de sua vivência com os jovens. Todos seus parceiros eram jovens e a maioria filhos de velhos amigos dele: Chico Buarque, Edu Lobo, Carlos Lira, Francis Hime, Baden Powell, todos foram seus parceiros antes dos 30 anos, inclusive o maior de todos, Tom Jobim. Toquinho era quase 35 anos mais moço do que ele. “Sou parceiro dos maiores músicos da história do Brasil”, se gabava, lembrando que tinha parcerias também com lendas como Pixinguinha e Ernesto Nazareth. “O Frank Sinatra gravou um disco inteiro com músicas minhas e do Tom, isto deixaria qualquer um orgulhoso, mas eu prefiro meu parceiro cantando”, disse.
Algum tempo depois, alguém chegou dizendo que já estava na hora do show e Toquinho, Mutinho, Azeitona e Sion se levantaram, arrumaram o cabelo e as roupas e saíram, enquanto o Poeta disse que ficaria mais um tempo com a gente e ia em seguida para o local do espetáculo no carro do organizador do show – que eu acho que era o professor Joaquim Cruz, que foi secretário municipal de Cultura nos anos 70.
É aí que voltamos à camisa amassada. Quando se despediu de nós, imaginei que Vinicius ia trocar de roupa para o show, mas ele simplesmente pegou a garrafa, o copo, deu de braços com as moças e foi embora.
Pedrinho, Moracy e eu queríamos ver o show e também zarpamos, levando embaixo do braço o gravador que parecia uma bolsa. Ainda no carro começamos a falar da camisa amassada. E o Moracy, o único adulto da turma, disse que certamente o poeta trocaria de roupa no camarim, já no cinema. Mas, quando entramos apressados ouvimos uma voz ao microfone mandando o governo militar à “tonga da mironga do kabuletê” e lá, em uma mesinha ao lado de Toquinho e seu violão, estava o poeta bebendo e cantando com a mesma camisa que dormiu à tarde.