Dona Nair, a professora do barracão da Vila 7 e os tempos do barro e poeira

A primeira professora da Escola Santa Maria Goretti lecionou 27 anos na mesma escola e ensinou ler e escrever também filhos de alguns de seus primeiros alunos. Dona Nair foi também artista, escrevia letras de músicas, poesias e até jingle de campanha política

Texto baseado em matéria feita em 2017 para o jornal O Diário no Dia do Professor
Luiz de Carvalho
Fotos: Cauhê Sanches e arquivo de família

As donas de casa da Rua Marquês de Abrantes, na Vila 7, podiam acertar o relógio pela hora que a professora passava. De cabelos ruivos quase vermelhos bem cuidados, sempre maquiada, de óculos, vestidos elegantes e de saltos altos, a professora Nair era pontual e, na medida em que seguia seu caminho, começava a ser acompanhada por grupos de meninos e meninas de guarda-pós brancos, calçados com sandálias de couro ou Alpargatas Roda, embornal de pano grosso com a cartilha, dois cadernos – um de linguagem e um de continha – e alguma coisa para comer no recreio.

Desde a mocidade Nair Loquetti escrevia versos, fez letras de música e até um jingle para um candidato que foi eleito prefeito de Maringá

A escola ficava na Rua Jangada, exatamente onde termina a Marquês de Abrantes, na parte da frente de um barracão de madeira, sem energia elétrica e a água vinha de um poço, tirada em baldes. O mictório era uma casinha de madeira em um terreno baldio do outro lado da rua. Na parte dos fundos da escola viviam, paredes-meias, várias famílias, todas com muitos filhos e que criavam galinhas soltas no quintal.

Essas imagens não saem da lembrança de dona Nair Loquetti Rodrigues, de 84 anos, primeira professora da Escola Isolada Santa Maria Goretti, que se aposentou na década de 1980 depois de 27 anos de trabalho na mesma escola, tempo em que viu a escola isolada virar escola municipal, depois grupo escolar e nas últimas décadas colégio estadual. Nos últimos anos de trabalho ela teve em suas classes várias crianças que eram filhas daqueles aluninhos de guarda-pó e bornal lá dos primeiros anos da década de 60.

“Eu tive uma aluna chamada Luzia Manfrinatto, que morava em um sítio onde hoje é a UEM (Universidade Estadual de Maringá), cresceu, casou e um dia apareceu na escola com uma menina de sete anos e exigiu que a criança fosse alfabetizada por mim, da mesma maneira que alfabetizei a ela”, conta.

As dificuldades para trabalhar na escolinha da Vila 7 parecem não ter aborrecido a primeira professora. Afinal, ter que amassar barro para chegar nos dias chuvosos ou voltar para casa toda empoeirada eram os mesmos problemas de todo mundo na época. A cidade não tinha asfalto e a energia elétrica chegava a apenas alguns bairros. O transporte coletivo também era incipiente, tanto que ela sempre foi e voltou a pé.

A escolinha na verdade estava em um barracão que tinha sido cedido à igreja católica e o bispo dom Jaime Luiz Coelho pretendia montar um orfanato. A Vila 7, que é a parte da Zona 7 abaixo da Avenida Colombo e compreendida entre as ruas Quintino Bocaiúva e a atual Lauro Eduardo Werneck, estava em formação e um grupo de moradores, liderado pelo pioneiro Antonio Manfrinatto, pediu ao bispo apoio para que o bairro tivesse uma escola. O bispo abriu mão do barracão depois que surgiu a oportunidade de criar o Lar Escola da Criança em uma chácara onde hoje é o Jardim Novo Horizonte.

Nair, uma paulista de Presidente Venceslau que já era professora desde os 18 anos em escolas da zona rural, foi a primeira professora da Maria Goretti. Depois chegaram também dona Guiomar e dona Idalina.

Na sala de paredes de madeira escurecida pelo tempo, a única luz era a natural que entrava pelas janelas. Quase sempre, a professora tinha que esquecer a elegância, dar de mão a uma vassoura para varrer a sala e convocar alunos para tirar a poeira das carteiras de madeira.

Meninos ocupavam o lado direito da sala, meninas o outro. As aulas começavam sempre com a oração do Pai Nosso e terminavam com uma Ave Maria. Todos tinham hinário e sabiam de cor o Hino Nacional, o da Independência, o da Bandeira, do Paraná e de Maringá. Aprendiam também canções especiais para o Dia das Mães, Dia dos Pais, das Crianças e outras datas.

Com a filha Elisabeth e o marido Antonio Rodrigues, o Toninho Espanhol

“As professoras estavam muito isoladas de tudo e tinham que usar a criatividade para oferecer certas atividades”, lembra Nair. Ela, por exemplo, chegou a escrever pequenas peças de teatro que eram encenadas pelos alunos em dias de festa e fez letras de música alusivas a determinadas datas.

Hoje, o Colégio Estadual Maria Goretti está em um prédio que fica a cerca de 200 metros do local em que nasceu, 56 anos atrás. Em seu histórico não consta que ele já funcionou em um barracão de madeira e nem que suas professoras pioneiras foram Nair, Idalina e Guiomar. Nem alunos, nem professores de lá sabem da luta dos primeiros dias, como se aquela parte da história tivesse sido apagada, embora dezenas de senhores e senhoras, hoje sexagenários, também tenham em suas lembranças os tempos em que, de guarda-pós, alpargatas nos pés, bornal do lado com cartilha “Caminho Suave”, os cadernos de Linguagem, Aritimética e o hinário, acompanhavam a professora que chegava elegante por ruas poeirentas.

 

Mais sobre o Maria Goretti

Depois de funcionar em um barracão de madeira da Rua Jangada, a Escola Santa Maria Goretti funcionou durante o ano de 1964 em uma sala cedida pelo Grupo Escolar Ipiranga (hoje, colégio), na Rua Campos Sales, e em 1965 foi inaugurado, pela prefeitura, o prédio próprio, no final da Rua Paranaguá.

O prédio, onde hoje funciona o Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos (Ceebja), na época tinha três salas de aula, uma pequena cozinha para o preparo da merenda, e uma salinha para a direção.

 

Mais sobre Nair

Além de saborear com doçura as lembranças de seu início no Magistério, dona Nair sempre se entregou a uma de suas maiores paixões: escrever poesias. Com apoio da família, ela selecionou algumas das muitas poesias que escreveu e foi publicado o livro “Nair, uma vida de fé em versos”, que pode ser encontrado nas livrarias maringaenses.

O amor pelos versos é antigo. Em 1956, quando ela era ainda uma menina moradora na zona rural, foi quem fez a letra daquele que seria o jingle da campanha do então candidato a prefeito Américo Dias Ferraz. Tudo começou como brincadeira, mas amigos gostaram da musiquinha, levou para os coordenadores da campanha e o material acabou sendo gravado pela própria Nair e uma amiga.

Aposentada, dona Nair morou em um apartamento no centro de Maringá, com o marido Antonio Rodrigues, seu parceiro de quase seis décadas, onde recebia as visitas dos cinco filhos (Margarete, Elisabete, Silmara, Wandercássio e Paulo Henrique), dos 11 netos e dos seis bisnetos. Ali, em um dos prédios de apartamentos mais antigos de Maringá (antes conhecido como ‘prédio da Pernambucanas’ por ficar em frente à famosa loja de departamentos, dona Nair morou até sua morte, em agosto de 2020.

*  A professora Nair Loquetti Rodrigues morreu em agosto de 2020.

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