O nome da mocinha portuguesa que trocou a calma de Malveiras pela poeira vermelha de uma cidade em formação, é o fio condutor de história que continua muitas décadas depois
Os 75 anos de Maringá marcam também os 75 anos da chegada de uma família portuguesa que iniciou, ajudou a fazer e continua fazendo a história desta cidade. Os Branco Carreira labutaram com a terra, criaram gado e porcos, mas fizeram nome como pioneiros do comércio de secos e molhados da região conhecida como Mandacaru e deram origem a outras empresas, entre elas um frigorífico que gravou seu nome na história e os armazéns de produtos finos presentes na Zona 5 e no Mercadão. Um dos destaques é dona Luisa de Jesus Branco Carreira, que, ao lado da mãe, dona Francisca, tocou o primeiro comércio da região do Mandacaru.
Quando Luisa chegou a Maringá, em 1953, encontrou um lugarejo de muito movimento, mas que não tinha luz elétrica, não tinha asfalto, a água era tirada de poços, o trânsito, que levantava uma poeira vermelha e colenta, era de caminhões carregando toras de grandes árvores, jipes, alguns automóveis e muitas carroças de rodas de madeira, carroções de quatro rodas e charretes, homens montados em cavalos ou em bicicletas. No centro da cidade havia imensos tocos de peroba no canteiro central da avenida principal.
Luisa de Jesus Branco Carreira era quase uma menina quando apeou em Maringá junto com a mãe, dona Francisca. As duas portuguesas de Malveiras já estavam em São Paulo há poucos anos. Jacinto Branco, marido de Francisca e pai de Luisa, tinha vindo para Maringá em 1947, comprou terras e, junto com o genro Diamantino da Conceição Carreira, português com quem Luisa se casou em São Paulo, tentavam formar uma fazenda com gado e porcos.
A família se instalou na Estrada Mandacaru, que ligava Maringá a Atalaia, com plantações de café a perder de vista dos dois lados. Como Diamantino tinha experiência com comércio, criou a Comercial Carreira e assim a Mandacaru ficou marcada por três importantes estabelecimentos: a Madeiras Philips, que transformava grandes toras em lâminas e toda produção ia para São Paulo; o Posto Jaú, que ficava na esquina de duas estradas importantes, a que ia para Atalaia e a que ia para Paranavaí, hoje BR-376; e a Comercial Carreira, que quase ninguém sabia o nome e chamava por Venda da Luisa, já que a mulher comandava o negócio enquanto o marido ia mexer com a fazenda.
A Venda da Luisa era a típica venda de beira de estrada, com altas prateleiras de madeira, onde se via lampiões, torradores de café, ferro de brasa, moinhos de manivela, penicos, lamparinas, panelas de alumínio, panelas de ferro, bules, chaleiras… no chão ficavam os sacos abertos com feijão, arroz, açúcar, sal, as latas de 20 litros de querosene… o balcão de madeira era ocupado por um suporte de ferro com três bobinas de papel de embrulho, um gaveteiro com carretéis de linhas brancas, retroses com linhas de cores, agulhas, botões, vira, renda, mais adiante ficavam caixas de madeira com carne seca, outras com manjubas secas e outras com bacalhau. Tudo seco porque ninguém tinha geladeira na época da Maringá sem energia elétrica.
“Trabalhare é meu fado”
Luisa é nome das heroínas dos romances de Eça de Queiroz e Camilo Castelo Branco, mas diferente das moçoilas sonhadoras, frágeis e pálidas do romantismo luso, a nossa Luisa tinha pé na realidade, ganhou a cor brasileira imposta pelo sol e a poeira e não sabia o que era hobby, lazer. Diferente da vida sonhadora da Luisa de Eça, a Luisa do Mandacaru tinha vida mais próxima à dos fados da Amália Rodrigues, sua cantora preferida, que mantinha viva a alma portuguesa nos portugueses longe da terra natal.
Aliás, quando chegavam os fins de semana e os moradores das colônias vinham em carrocerias de caminhões, em carroças e cavalos para a cidade comprar pano para roupas, ver vitrines na Avenida Brasil ou assistir matinê, circos de vila, eram os dias de maior movimento na Venda da Luisa. Ela e os empregados não paravam desde que o dia amanhecia até a noite.
Depois da venda fechada, a mulher que não parava cortava rodelas de batata, colocava sobre as frontes e as prendia com um lenço de cabeça na tentativa de aplacar as dores de cabeça advindas da correria, do converseiro, da bulha. Era hora de mexer com papéis, fazer contas, ver os fiados, ver o que precisava para repor o estoque. Ia dormir tarde da noite, sempre depois das preces a Nossa Senhora de Fátima, e acordava ainda na madrugada seguinte ao primeiro apito da laminadora da Philips ou o da Sanbra.
O tempo passou com Luisa sem tempo para missas aos domingos, ouvia falar dos grandes bailes do Aero Clube, só ouvia falar; viu os patrícios entusiasmados com a fundação do Centro Português, até conheceu o clube junto com o marido, mas nos dias de eventos ela estava ocupada demais na venda.
Luisa não sonhava com festas. Sonhava com pelo menos um dia de descanso. “Trabalhare é meu fado”, dizia.
Subindo em linha recta
Maringá cresceu, ganhou energia elétrica, asfalto, água encanada. E a vida das vendas de beira de estrada mudou. As geadas de 1975 dizimaram a cafeicultura e decretou o fim das colônias de casas nas fazendas, o êxodo rural levou tudo mundo para as cidades. A Estrada Mandacaru virou avenida, ganhou uma segunda pista e os portugueses subiram alguns metros na linha recta. Construíram um belo sobrado, com o mercado embaixo e um confortável apartamento no andar de cima. Isto na Avenida 19 de Dezembro, uma continuação da Avenida Mandacaru, só que do lado de cima da Avenida Colombo.
Agora, não mais aquele balcão atulhado de caixas de bacalhau, manjuba, baleiro e bobinas de papel, agora era um verdadeiro supermercado, com serviço de açougue, padaria, espaço, muito espaço. Nesse novo tempo o feijão, o arroz, o açúcar, o sal já vinham empacotados em sacos plásticos, torradores e latas de querosene já não vendiam, mas outros produtos entraram para o estoque.
Já não era mais a Venda da Luisa, mas o Mercado da Dona Luisa.
Ali Luisa viveu menos correria, menos bulha, mas continuou trabalhando muito. Pessoas até achavam que o mercado não fechava nunca. Passavam às 6 da manhã para ir trabalhar, o mercado estava aberto, voltavam à tarde, o movimento no mercado ainda está grande, e se alguém passasse lá pelas oito ou nove da noite saberia que Luisa não estava assistindo novela na TV, estava atendendo, ou fazendo contas, ou arrumando prateleiras. “Não sei pilotar carros, não sei pilotar fogão, meu fado é trabalhare”, dizia sempre a mulher que não perdeu o sotaque e nem o costume de aproveitar os poucos momentos de sossego para se deliciar com a música de Amália e as saudades da Terrinha.
Cidadã Honorária de Maringá
Desde a inauguração do Mercadão de Maringá um dos principais estabelecimentos é o Armazém Dona Luiza e ultimamente há o Armazém Dona Luiza & Cia – Empório Gourmet e Restaurante Português, na Avenida Independência. Pouca gente sabe que a denominação do Armazém é uma homenagem à portuguesa que veio ao Brasil para trabalhar por uns cinco anos e retornar a Malveiras, mas ficou toda sua vida, assim como o marido, Diamantino, a mãe, dona Chica, o pai Jacinto Branco e o irmão, o empresário José Ferreira Branco, o conhecido Zé Português.
A mulher que só trabalhou e criou as duas filhas, Neide Regina e Janete Cristina, na bulha mercado, teve sua labuta reconhecida, tanto pela família, que deu continuidade às atividades no comércio, quanto pela cidade, que a homenageou na Câmara de Vereadores com o título de Cadadã Honorária de Maringá, sugerido pela vereadora Serafina Carrilho.
Ao homenagear Luisa de Jesus Branco Carreira, a Câmara de Maringá reconheceu o trabalho de todos membros da família que ajudou a construir a cidade desde os primeiros momentos e aqui fez morada perene. Nem o som da guitarra portuguesa, nem a dolência de Amália Rodrigues convenceu os Branco e os Carreira a deixar a terra roxa de Maringá e voltar para as terras de além-mar.
Entre Luisas e Luzias
A ideia dos armazéns com o nome de Dona Luiza partiu do neto Rodrigo César Carreira da Costa, filho mais velho de Janete, que assim pretendeu homenagear todas as mulheres da família e algumas que não são do mesmo sangue mas são como se fossem, como é o caso de Juraci Gaioto, cujo nome de batismo é Luzia porque a igreja católica cobrava um nome de santo em cada criança brasileira, e dona Luzia Brugim Domingos, pioneira, viúva do conhecido alfaiate Oswaldo Franco Domingos, fundador da Alfaiataria do Franco, que funciona até hoje.
Dona Luzia Domingos é a dona do imóvel em que está o Armazém Dona Luiz & Cia – Empório Gourmet e Restaurante Português, a primeira casa de Alvenaria daquele trecho da Zona 5, construída na década de 1950, tratada e conservada como uma relíquia. Coincidentemente, a casa de Luzia em que está o empório que leva o nome de Luisa está na Avenida Independência, a avenida mais curta de Maringá, uma continuação da Avenida 19 de Dezembro, que, por sua vez, é continuação da Mandacaru. A mesma recta, só nomes diferentes. Tudo isso é fado.
A outra Luzia, que na verdade é Juraci, não é portuguesa, mas seu marido, Manoel Martins Filho, é português e com grande experiência no comércio de produtos finos. Por muitos anos o casal foi dono da Ajustrel, que oferecia o melhor da culinária mediterrânea na esquina da Praça dos Expedicionários com Avenida Rio Branco.
Bacalhau imerso no azeite
Entrar no Armazém Dona Luiza & Cia leva a pessoa a uma profunda experiência sensorial, a começar pelo fato de o lugar não parecer um estabelecimento comercial e sim uma residência, o que deixa a sensação de se estar entrando em uma casa de uma família. Uma casa portuguesa, com certeza, com seus cheiros de panela no fogo, vinho verde, temperos diversos. O fado, que não podia faltar, está presente com os muitos discos de Amália Rodrigues decorando paredes. E o fado voga.
Rodrigo Carreira hoje assume o legado da avó Luisa, da bisavó Francisca, Jacinto, Diamantino, Neide e Janete e, numa parceria com Juraci, traz às novas gerações anos e anos de uma tradição vinda de além mar, fez história em Maringá e agora conserva esta história e esta tradição com a arte de bem atender e levar aos clientes as melhores mercadorias e experiências.
O bacalhau esteve presente na história dos Branco/Carreira desde a venda da Estrada Mandacaru, geralmente em caixas sobre o balcão. Hoje, no Armazém Dona Luiza & Cia o legítimo bacalhau Gadus morhua é encontrado dessalgado em lombos, postas, lascas e desfiado, pronto para o preparo de deliciosos pratos. Mas, quem conhece o talento de Juraci no preparo, pode escolher deliciar-se com o melhor bacalhau ali mesmo. Ela e sua equipe preparam bacalhau para grupos de todos os tamanhos.
No Armazém encontra-se ainda azeites portugueses e de outros países, azeitonas, tremoços, castanhas e frutas secas, temperos vendidos a granel, grande variedade de doces mineiros, carne de sol e charque, cachaças artesanais, o já tradicional torresminho Fino do Porco, linguiças nordestinas e muito mais.
A história que começou com a mocinha portuguesa na poeirenta Estrada Mandacaru quando a cidade ensaiava seus primeiros passos continua hoje e, pelo jeito, seguirá gerações adiante. Isso também é fado.
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